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As bolhas que furei

Eu acho que posso dizer que dificilmente gastei meu tempo tentando me encaixar em modelos que criaram em torno de mim, pois quase que sempre, fui aquele tipo de pessoa de gostar de furar umas bolhas.
Eles diziam: “Uma pessoa preta não fala assim, não come assim, não se veste assim, não ouve essas músicas, não frequenta esses lugares. Não pode.” Minha retórica sempre foi: “Sim, pode! Uma pessoa preta pode tudo.” Eu pensava comigo mesma que a palavra usada não deveria ser “não”, e sim “oportunidade”. Sou teimosa.
Quando eu era mais jovem, na infância e em grande parte da adolescência, eu não tinha identidade. Não estou falando da identidade no sentido literal, pois obviamente não faz muito sentido uma criança tirar identidade, caso não tenha razões legais para usá-la. Estou falando no sentido do “Eu”, a persona, a mesma explicada por Carl Jung. Eu não sabia quem eu era. Me via de uma maneira distorcida, sem identidade. Meu cabelo não era Eu, minhas roupas não eram Eu, minha religião não era Eu, minhas escolhas não eram Eu.
Eu era influenciada pela cruel mídia racista, que negava e apagava tudo que remetia lembranças da minha ancestralidade. O cabelo tinha que ser “liso”, a música tinha que ser gospel, a religião tinha que ser cristã, a pele tinha que ser alva. Eu não me encaixava, mas tentava estar o mais próximo possível dos arquétipos disponibilizados para mim naquele momento. Eu não tinha referências que me aproximassem do meu verdadeiro Eu.
Cresci sem saber quem eu era. No final da adolescência, chegando à fase adulta, a rebeldia que me dominava me induziu a descobrir como furar bolhas. Furei e quebrei também muros. Me achei. Me vi como uma mulher negra pela primeira vez quando trançei meu cabelo.
Fui por muito tempo coagida a seguir um padrão ditado por uma sociedade hipócrita e cruel, que me feria, me excluía e destruía minha autoestima diariamente. Uma sociedade que, além de ser patriarcal, é racista. A luta sempre foi dupla ao corpo feminino negro. Antes de uma pessoa negra ser vista como uma mulher, ela precisava ser vista como um ser humano. E o racismo desumaniza a gente, nos silencia, nos invisibiliza. Quando nos veem, nos objetificam, nos supersexualizam.
Em seguida, vêm os estigmas e os estereótipos racistas-machistas. Ocupei muitos espaços que me causaram estranhamento ao perceber que meus semelhantes não frequentavam. Eu sempre questionava este fator; no entanto, sempre aparecia alguém para também questionar o que eu estava fazendo naqueles lugares que não eram meus. Outra vez, tentativas frustradas de me paralisar. Eram os muros, os muros do apartheid social. Consequentemente, os que não tinham o “ticket” de entrada eram pessoas negras, meus irmãos. Era a falsa democracia racial que atingia e ainda atinge a sociedade brasileira.
Ainda há quem fale em racismo reverso. O povo negro não tem poder institucional para cometer racismo reverso. Talvez até pudesse haver racismo reverso se, por 500 anos, pessoas negras tivessem escravizado pessoas brancas. No entanto, continuo furando bolhas e ninguém pode se sentir no direito de me parar, pois além de pernas, tenho asas e posso voar.


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Alessandra Martins

©2024 Por Alessandra Martins.

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